Friday, December 31, 2010

Próprias Mãos

Tropeçamos nas próprias mãos, levantamos os pés do chão, sublimamos e matamos, a fantasia é uma psicopata, a realidade, ainda assim, é sempre mais fantástica.
CaLua

Monday, December 27, 2010

Uma Espiã.

"Ela tinha de voltar a delinear o rosto, alisar as sobrancelhas ansiosas, separar as pestanas unidas, apagar os traços de secretas lágrimas interiores, acentuar a boca como numa tela, para que ela conservasse o seu sorriso exuberante. O caos interior (...) esperava por detrás de toda a desordem por uma fenda por onde explodir."
Anais Nin

...uma espiã na casa do amor

Tuesday, December 07, 2010

Tropeços

Tropeçei de Frase em frase e encontrei trilhos de margens soltas de linhas e fiz um caminho.
E este Caminho não é uma Auto-estrada... mas é uma estrada fantástica, cheia de curvas e contra-curvas, subidas e descidas, paragens e arranques. E em cada curva, uma surpresa, um lobo mau, uma fada, uma borboleta amarela, um leopardo negro, um companheiro...
Pior do que não terminar o caminho é nunca partir e dar o passo. A Vida não é a simples respiração contínua mas são os momentos capazes de nos tirar o fôlego.


Não quero viver de fantasias e sim de realidades fantásticas.

Mais importante do que encher a minha mala de dinheiro ou matéria é levar dentro dela os meus olhos e a curiosidade suficiente para saber ver. A forma como caminhamos ensina-nos que existem “Estações” de felicidades e que a “Felicidade” não é uma “Estação” estanque.
Caminhando, se faz o Caminho. A Tua Vida é o Caminho, não o contrário.
Vamos caminhar e Ser quem somos... sem mais nada.
Por recantos e cantinhos que conheço e desconheço, há tanto tempo, ver-me assim, a caminhar, percebo que um “Pequeno Tropeço Pode Impedir Uma Grande Queda”, e caminho.
Se não levo dentro de mim a beleza do Mundo, nunca a encontrarei por mais que caminhe, e por isso é necessário parar de sonhar e, de algum modo, partir. A pobreza não tem bagagem, tem a riqueza da mente humana que a natureza nos deu, porque a Vida é o caminho e não o contrário. Uma coisa é pensar que estou no caminho certo, outra é saber que o Meu caminho é Único.

CaLua

Thursday, December 02, 2010

O Corvo

Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste, Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia. O som de alguém que batia levemente a meus umbrais
«Uma visita», eu me disse, «está batendo a meus umbrais.
É só isso e nada mais.»
Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro, E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais. Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada. P'ra esquecer (em vão) a amada, hoje entre hostes celestiais — Essa cujo nome sabem as hostes celestiais, Mas sem nome aqui jamais!
Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundindo força, eu ia repetindo, «É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
É só isso e nada mais».
E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante, «Senhor», eu disse, «ou senhora, decerto me desculpais; Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo, Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais, Que mal ouvi...» E abri largos, franquendo-os, meus umbrais.
Noite, noite e nada mais.
A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais — Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.
Isto só e nada mais.
Para dentro estão volvendo, toda a alma em mim ardendo, Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais. «Por certo», disse eu, «aquela bulha é na minha janela. Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais.» Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.
«É o vento, e nada mais.»
Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça, Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais. Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento, Mas com ar solene e lento pousou sobre meus umbrais, Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais.
Foi, pousou, e nada mais.
E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura. Com o solene decoro de seus ares rituais.
«Tens o aspecto tosquiado», disse eu, «mas de nobre e ousado, Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais! Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais.»
Disse-me o corvo, «Nunca mais».
Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro, Inda que pouco sentido tivessem palavras tais. Mas deve ser concedido que ninguém terá havido. Que uma ave tenha tido pousada nos seus umbrais, Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,
Com o nome «Nunca mais».
Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto, Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais. Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento Perdido, murmurei lento, «Amigo, sonhos — mortais. Todos — todos lá se foram. Amanhã também te vais».
Disse o corvo, «Nunca mais».
A alma súbito movida por frase tão bem cabida, «Por certo», disse eu, «são estas vozes usuais.
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono. Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais, E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais
Era este «Nunca mais».
Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura, Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais; E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira Que qu'ria esta ave agoureira dos maus tempos ancestrais, Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,
Com aquele «Nunca mais».
Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sombras desiguais, Naquele veludo onde ela, entre as sombras desiguais,
Reclinar-se-á nunca mais!
Fez-me então o ar mais denso, como cheio dum incenso. Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais. «Maldito!», a mim disse, «deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais, O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!»
Disse o corvo, «Nunca mais».
«Profeta», disse eu, «profeta — ou demónio ou ave preta! Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais, Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais, Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!»
Disse o corvo, «Nunca mais».
«Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!, eu disse. «Parte! Torna à noite e à tempestade! Torna às trevas infernais! Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!»
Disse o corvo, «Nunca mais».
E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda. No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais. Seu olhar tem a medonha dor de um demónio que sonha, E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão mais e mais, E a minh'alma dessa sombra, que no chão há mais e mais,

Libertar-se-á... nunca mais!

Fernando Pessoa(1888-1935)
"O Corvo", poema de Edgar Allan Poe traduzido por Fernando Pessoa

Wednesday, December 01, 2010

Decompor a Sensação...

Toda a arte se baseia na sensibilidade, e essencialmente na sensibilidade.
A sensibilidade é pessoal e intransmissível.
Para se transmitir a outrem o que sentimos, e é isso que na arte buscamos fazer, temos que decompor a sensação, rejeitan...do nela o que é puramente pessoal, aproveitando nela o que, sem deixar de ser individual, é todavia susceptível de generalidade, portanto, compreensível, não direi já pela inteligência, mas ao menos pela sensibilidade dos outros.


Este trabalho intelectual tem dois tempos: a) a intelectualização directa e instintiva da sensibilidade, pela qual ela se converte em transmissível (é isto que vulgarmente se chama "inspiração", quer dizer, o encontrar por instinto as frases e os ritmos que reduzam a sensação à frase intelectual (prim. versão: tirem da sensação o que não pode ser sensível aos outros e ao mesmo tempo, para compensar, reforçam o que lhes pode ser sensível); b) a reflexão crítica sobre essa intelectualização, que sujeita o produto artístico elaborado pela "inspiração" a um processo inteiramente objectivo — construção, ou ordem lógica, ou simplesmente conceito de escola ou corrente.


Não há arte intelectual, a não ser, é claro, a arte de raciocinar. Simplesmente, do trabalho de intelectualização, em cuja operação consiste a obra de arte como coisa, não só pensada, mas feita, resultam dois tipos de artista: a) o inspirado ou espontâneo, em quem o reflexo crítico é fraco ou nulo, o que não quer dizer nada quanto ao valor da obra; b) o reflexivo e crítico, que elabora, por necessidade orgânica, o já elaborado.


Dir-lhe-ei, e estou certo que concordará comigo, que nada há mais raro neste mundo que um artista espontâneo — isto é, um homem que intelectualiza a sua sensibilidade só o bastante para ela ser aceitável pela sensibilidade alheia; que não critica o que faz, que não submete o que faz a um conceito exterior de escola ou de moda, ou de "maneira", não de ser, mas de "dever ser".


Fernando Pessoa, in 'Carta a Miguel Torga, 1930'